Onde está o MPLA?

Fui educada na convicção de que as pessoas podem mudar, mas conservam, lá no fundo, o melhor que têm, por mais ténue que seja a manifestação desta evidência. E é com base na lembrança destas palavras da minha mãe que dou por mim a perguntar: Onde está o MPLA?
Faço esta pergunta, não como uma provocação, nem como uma tentativa de perturbar a ordem constitucional, mas porque é o partido que governa o nosso país. A pergunta é feita pela preocupação de quem vê um projecto que já foi grandioso a afundar-se pela ausência de uma consciência que fosse capaz de devolver a este partido a nobreza com que se fez nascer.
Hoje, a linha dura deste partido, já não sabe se é de esquerda, se é de centro direita, como se enquadra na economia de mercado, que país deve ser amigo, que correntes históricas são ainda válidas, que autores devem ser tidos como referências. Talvez resida nesta indefinição a dificuldade em aceitarem a democracia. A resistência em viver no pluralismo de opiniões e na defesa dos direitos humanos. Hoje a liderança que impera é uma "esquerda caviar" que já não consegue disfarçar a gula pelo capitalismo, mas que conserva a foice e o martelo na sua indesmentível postura de bom militante. Em que altura se perderam?
Eu nunca fui do MPLA e nunca serei por duas razões que não têm nada a ver com nenhum tipo de radicalismo. A primeira por ter percebido que o tempo histórico de todos os movimentos do mundo que nasceram com o intuito de libertar se esgota quando eles se convertem numa coisa feia por terem perdido os ideais humanistas.
A segunda razão deve-se ao respeito pela minha herança genética. Mas isso não invalida a minha avaliação positiva por um movimento que, no meio do século passado, no tempo em que opaís ainda não era nosso, altura de forte perseguição aos sonhos nacionalistas, conseguiu congregar todas as cores e credos, todas as opiniões e idades, gente do norte e do sul, pessoas de todas as classes sociais. Havia um projecto. Havia um caminho. Mas tinham, sobretudo, um desejo de transformar Angola num sítio melhor para um povo que vivia amordaçado dentro da sua própria casa.
Onde estão estas pessoas? Onde estão as mulheres que criaram filhos no exílio, que dentro da clandestinidade suportaram todas as agruras da ausência de conforto para as suas famílias? Onde estão os poetas que escreveram sobre uma Angola Livre e Democrática e que foram alvo de todas as torturas? Onde estão os filhos genuínos daquele MPLA que tantos angolanos fez orgulhar a ponto de deixarem a sua família para serem presos de consciência de um tempo de ditadura? Onde estão? Onde estão os exemplos ainda vivos que se fizeram políticos, numa infância de calções e de fisga, pela humilhação de verem como eram tratados o pai ou o tio.
Onde estão vocês, angolanos daquele tempo, que quando falam comigo, fora do palco e sem holofotes, me mostram quão grande é o desalento de serem, hoje, testemunhas deste presente de desencontro, de ausência de uma causa e da falta de nobreza. Hoje o que existe é um partido remendado, como aqueles remendos que as avós cosiam nos joelhos das calças que deixavam de poder ser vistas em público. Um partido cujo pensamento é cada vez mais difícil de ser entendido e de ser defendido. Um partido onde muitos bons militantes foram "encaixotados" e postos na prateleira por terem opinião. Um partido que aceita ser representado por uns miúdos atrevidos, que estão a envelhecer na arrogância, que carregam "qualquer pasta" pois é neste curvar de espinha que conquistam os relógios de ouro, os carros de luxo, a soberba e uma vida que são prova do estrabismo da sua ambição, a protecção institucional não obstante o ridículo da sua postura e a deselegância da sua falta de humildade durante o seu instante de glória. No tempo colonial, tempo do adiamento de todos os sonhos de justiça e igualdade, embora existisse muita pobreza ainda ganhava a nossa honra. Hoje olhamos para um MPLA que continua a afirmar-se como o libertador, o autor da nossa nacionalidade e vemo-lo incapaz de disfarçar a insensibilidade que deixa perceber que já não lhe resta nenhum projecto de Nação. Um partido que se deixou engolir pelo brilho das benesses, que a todos um dia pode chegar e por isso, na eventualidade, o melhor é não fazer ondas! Haverá um preço colectivo?
Não me falem da possibilidade da paz estar em perigo como se fossemos miúdos e este fosse o cenário do bicho papão, argumento que dispensa comentários, pois qualquer ser, mesmo desprovido de inteligência, sabe que, no actual contexto, a ausência de paz jamais dependerá do povo. Como é possível continuar a olhar para o desgoverno dos últimos 13 anos de Paz e ficar impávido e sereno, na convicção de que a acumulação primitiva de riqueza justifica todas as consequências de uma gritante má distribuição da riqueza nacional? Por isso repito: onde está o MPLA? Onde estão as avós, senhoras de princípios, que educaram tantas gerações e que ainda são a reserva moral da Nação? Onde estão os pioneiros, vossos filhos e netos, que acreditaram em todas as palavras de ordem de todos os deveres revolucionários? Que exemplo lhes estais a deixar?
A história tem um registo que ninguém consegue apagar por mais poder que tenha. A indelicadeza com que se trata um povo é crucial para um mau desfecho eleitoral, por mais tempo que demore. Não se pode ter um pé enfiado em dois sapatos. Não podem ter uma opinião Revús nas almoçaradas de família, na intimidade de uma tristeza que já não conseguem esconder e ao mesmo tempo serem capazes de gritar elogios públicos pelas coisas em que já não acreditam e com as quais já não concordam, não obstante o peso da razão com que o façam. A verdadeira oposição são vocês, militantes indignados.
Militantes preteridos do conforto das regalias, não obstante a vida que dedicaram à causa. Militantes convictos, que amam o vosso partido, que sentem saudades do tempo em que o "mais importante era resolver os problemas do povo". Militantes que estiveram em todos os momentos de decisão da nossa história, que não hesitaram em enfrentar o medo e a estadia em todos os Tarrafais pela defesa da salvaguarda da vida de todo o povo. Depois veio a Independência. E o MPLA iniciou um processo de auto exclusão dos seus mais íntimos ideais.
O 27 de Maio marcou o fim da unidade e do sentimento de pertença. E durante estes anos todos um sentimento difuso é confessado. "Não foi nada disto que combinámos" - dizem os velhos ao reconhecerem o "descaminho" do passado a que dedicaram o futuro e os sonhos. Onde está o MPLA dos ideais dos anos 50 e 60? Onde estão as pes-soas que podem fazer a diferença? Salvem o vosso MPLA. Defendam a justiça e a liberdade. Defendam uma eleição presidencial directa.
Defendam o sonho pelo qual muitos dos vossos companheiros, pais e filhos perderam a vida. Defendam-se de serem um futuro envergonhado por terem desviado olhar, por terem sido coniventes com o vosso silêncio. Onde estão? Homens chefes de família, éticos e invioláveis, que na certeza de uma ideia nada vos fazia recuar, que pela causa perdestes a juventude. Não me digais que já estais velhos de mais para continuar. Não desistais de ser verdade!
O nosso país precisa de exemplos vivos, exemplos bons de virtude e de abnegado nacionalismo. Onde estão os angolanos? Todos os angolanos? De todas as convicções políticas, credos e cores? Onde estão, justos, democratas, sonhadores, imparciais, isentos, coerentes, velhos guardiães da nossa identidade colectiva? Onde estão os jovens a quem pertence o futuro que está a ser adiado? Onde estão os vossos sonhos de criarem filhos em segurança, que não sejam as vítimas futuras por pensarem diferente e se repita o triste passado colonial de todas as violações aos vossos direitos civis.
Onde está a vossa vontade de ser Angola, de ser parte do orgulho nacional de um país que pode ser justo e tem que ser para todos? Todos os angolanos são imprescindíveis para o projecto futuro de Angola. Somos poucos. Não nos podemos dar a esse luxo da actualidade que descarta pessoas. Todos são importantes e necessários para que a nação se construa.
Precisamos encurtar as distâncias. Precisamos de olhar para o outro sem desconfiança. É preciso que a nossa policia se humanize, se imponha pelo rigor da Lei e da Justiça de um Estado de Direito e não pelas ocultas "ordens superiores". Somos uma mesma família. O que nos distingue não pode ser superior ao nosso amor pela pátria. ANGOLA é o POVO!
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