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Guardei-me, para memória futura dos meus filhos!

Não limpei o disco duro porque não tenho qualquer dívida com a legalidade. Mas guardei-me para a memória futura dos meus filhos e daqueles que me amam, se por acaso a morte me encontrar sem aviso prévio, como nos encontram as rusgas e os "mandatos que vasculham evidências" que violam a vida e a dignidade das pessoas, mesmo quando não são prova de coisa nenhuma.

Guardei a poesia revolucionária de amados nacionalistas angolanos que nos conduziram à independência, que contêm verdadeiras e actuais lições sobre como defender a pátria de todas as injustiças, fruto do sacrifício do tempo em que tiveram que suportar a perseguição, a humilhação, a dor da prisão e o som do chicote sempre presente na mão de gente que não temia a Deus, nem vertia lágrimas por nenhuma atrocidade. Guardei-a porque são relíquias históricas, pois temo que, com o andar da carruagem, um dia seja proibida a sua leitura, se "alguém" considerar que, afinal, podem dar "ideias alargadas" a quem já não espere mais nada desta vida. Guardei o Hino Nacional, a "pátria unida, liberdade, um só povo e uma só nação" que exalta a conquista da liberdade dos povos, de todos os povos oprimidos, e nos diz que "orgulhosos lutaremos pela paz", porque não tenho a certeza se nos dias que correm continuará a ser benquisto por conter expressões como "Angola avante, revolução, pelo poder popular".

Guardei o medo que não permite que sejamos livres, para não contagiar os meus filhos que sempre me viram como uma pessoa corajosa. Guardei-o, não por medo, mas por respeito, na certeza de que foi afastando o medo, que os nossos velhos tiveram coragem para enfrentar, quando eram jovens, toda a violência física e psicológica que a tenebrosa PIDE colonial, com requintes de malvadez, fazia às pessoas que pensavam de forma diferente. Guardei a minha ausência de ódio,de mesquinhez, de intriga e de inveja, para eu saber quem era antes, se algum dia for invadida por qualquer doença que me traga o esquecimento da memória, porque quero uma vida sem mágoas gratuitas e sem rancores que nos atrasam a caminhada por serem demasiado pesados. Foi no exemplo de Nelson Mandela, um farol para o século XXI, um Africano que representa o melhor da humanidade, que nele deixou de ter cor, país, credo, ideologia, consentindo todos os sacrifícios para que a sua pátria fosse livre e que um dia ganhou um país, que percebi quão inúteis são os sentimentos pequeninos de vingança e de prepotência.

Guardei os downloads, feitos com ânsia para que gerador não parasse a meio da dita gravação, de livros digitais que toda a gente deve ter lido antes de morrer, de grandes escritores, almas sábias e generosas, verdadeiros legados de coragem. Gente que em todos os séculos soube conduzir a humanidade para um patamar de progresso, que permitiram que a maioria dos países fosse "descondenada" de viver na escravidão da herança dos tempos do obscurantismo medieval.

Guardei a minha esperança, a minha fé e a minha dor, porque são minhas, sou eu que as sinto e faço com elas o que me apetecer. Os meus sonhos, por acontecer, de um país sem gente que sofra por indiferença, por abandono, por não terem sido incluídos, gente que continua a acreditar que a pátria, tal como as crianças, tem que ser sempre uma prioridade. Guardei frases de gente famosa que me inspiram, todos os dias, a ser melhor pessoa, mais humana e humilde, das quais me sirvo muitas vezes para explicar aos meus filhos a essência das coisas, as agruras da longa caminhada para a liberdade que levou consigo muitos filhos de gente boa e que hoje um inexplicável retrocesso quer fazer com que sejamos órfãos de causas e que consideremos issocomo a garantia da nossa segurança individual, "Xé minino, não fala política". Mas guardei também, e em segurança, as fotos dos meus filhos quando eram bebés, as minhas palavras soltas sobre os projectos de livros que tenho na cabeça, a Pasta "Manolo Simeão", que criei, onde tenho os desenhos que o meu pai deixou espalhados por esta cidade antes de ser morto em 1993, pela actualidade com que retratam os usos e abusos da nossa governação.

Guardei os retratos amarelecidos das minhas tranças penteadas em lágrimas, pela rebeldia da minha carapinha, todos os dias, pela avóJulieta Simeão e as músicas que me fazem regressar ao passado, quando os meus tios, Milo e o Raúl do Duo Ouro Negro, cantavam para nós, melodias que falavam de um tempo difícil em que entrávamos sempre pela porta da cozinha, mas nunca perdendo a esperança de que um dia a victória se instalaria. Hinos onde todas as vozes foram úteis para cantar a liberdade, para cantar Angola. Guardei a minha mãe, as suas glórias, a sua generosidade, as suas palavras em discursos eleitorais, os abraços das últimas caminhadas. As festas de Natal emolduradas em pastas digitais, a mesa grande e as rabanadas com açúcar e canela.

Guardei-vos, pai e mãe a quem devo tudo o que sou. Que me obrigaram a ser consequente com as coisas que considero estarem correctas, sendo hoje uma pessoa que apenas quer ser justa, sem outras ambições. Guardei-vos porque se estivessem aqui estariam tristes por causa da demora da democracia.

Guardei a Lei de Murphy , que diz que quando há "qualquer coisa que pode correr mal, então vai correr mal", num ficheiro oculto e sem nome, para não o encontrar, porque quero que ela desapareça do mundo para não poder continuar a convencer-nos de que somos reféns de um destino oculto e poderoso que nos impede de ir para além de nós, porque passamos a acreditar no azar. Guardei o meu passado e o meu presente numa cópia de segurança pela insegurança que se instalou.

Agora já podem levar o meu computador, se algum dia acharem que eu "pisei o risco" com as palavras que não caíram bem, porque não eram de elogio, mas eram verdadeiras e que podem ser sempre interpretadas como uma "tentativa" de qualquer outra coisa tenebrosa que justifique que tudo seja apagado e eu deixe de ter uma memória. Mas no fim, bem fundo no coração estará sempre o amor que tenho ao meu país, porque Angola Somos Todos Nós!

 

 

in http://agora.co.ao/Agora/Artigo/58846

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