Entrevista Angola Horizonte

O Angola Horizonte 10 Anos colheu numa entrevista exclusiva a opinião da Dra. Alexandra Simeão sobre a condição da mulher em Angola no âmbito do seu debate sobre a questão. Na entrevista excepcional que segue, a ex-vice-ministra da educação para Acção Social falou da questão oferecendo uma fina análise que partilhamos aqui convosco. E em cidadã empenhada fascinante, falou-nos também da sua impressionnante acção humanitária.
1. Mulher de experiência, que assumiu cargos importantes, que se distinguiu na sociedade angolana, como caracteriza a condição da mulher hoje em Angola ?
R. Não me é possível falar da Mulher Angolana como se fosse um corpo homogéneo, porque isso não corresponde à verdade. Assim terei que falar da mulher angolana urbana escolarizada e empregada e da mulher sem escolaridade, no campo ou na cidade, que não tem emprego e vive do mercado informal. Para as primeiras podemos aferir, sem qualquer dúvida, que tem havido imensos progressos. Não apenas no domínio da escolarização, formação superior e acesso, mas também ao nível da conquista de cargos de chefia e de cargos políticos e públicos de grande responsabilidade. Assim conseguimos ver mulheres dos principais partidos políticos com assento no parlamento, a vice presidente do Parlamento é uma mulher, temos ministras, vice-ministras e governadoras provinciais, bem como ao nível do poder local no que às Administrações digam respeito.
O acesso ao emprego formal é acessível a estas mulheres que da banca, aos seguros, passando por empresas petrolíferas e de construção, bem como profissionais liberais, conseguem nos diversos escalões encontrar um emprego com garantias de segurança e estabilidade. Este pressuposto de segurança permite que tenham acesso ao crédito bancário podendo com isso aceder à compra de casa própria, aquisição de viatura, suportar os custos de uma educação privada dos seus filhos e ter acesso a seguros de saúde que lhes permitirão aceder a serviços de saúde de maior qualidade. Mas quando olhamos para o segundo grupo de mulheres, às vezes até pensamos se de facto elas têm direitos. Élhes, desde a infância, negado um progresso com qualidade no ambiente escolar porque têm que contribuir para o rendimento familiar, trabalhado desde tenra idade, quer seja na lavra, a tomar conta dos irmãos ou a vender à porta de casa.
Para além de em muitos casos ajudarem a acartar água para casa. Na adolescência são as mais atingidas pelas gravidezes precoces o que desde logo inibe o sonho do regresso à escola. Na idade adulta, muitas vezes já com mais do que um filho, numa elevada percentagem de famílias monoparentais, estas mulheres apenas conseguem encontrar trabalho ou como empregadas domésticas, cujo estatuto remuneratório é aleatório e apenas absorve uma minoria e na cidade, ou têm que se voltar para o mercado informal e vendem ou nos mercados ou na rua. Neste tipo de actividade, as Zungueiras como são carinhosamente tratadas, deambulam pela cidade com pesadas bacias na cabeça muitas vezes com os filhos às costas. O que ganham dá apenas para jantar e voltar a repor o negocio para a venda do dia seguinte. Isto nos dias em que a polícia ou os fiscais das administrações não lhes retiram a mercadoria aumentando quer o prejuízo quer o desespero.
Por isso falar de mulher angolana na generalidade ainda não pressupõe aceitar que as suas condições tenham sido melhoradas tendo em conta que a maioria das mulheres, que também são a maioria da população, pertencem ao segundo grupo.
2. Acha que já se atingiu a plena igualdade entre os homens e as mulheres em Angola ou ainda vê desigualdades do género?
R. Esta é uma pergunta que no nosso caso fica difícil responder tendo em conta que quando nos referimos a países com um índice de pobreza muito elevado as igualdades são sempre muito relativas. Se novamente olharmos para o primeiro grupo de mulheres não me custa aceitar este patamar de igualdade. Agora entre os desempregados, os que vivem do mercado informal, entre os que não tiveram acesso a uma escolaridade que os pudesse projectar para um patamar de conforto constitucional, aqui acho que nem faz sentido procurar a igualdade porque os problemas afectam de igual modo homens e mulheres, sendo que no caso das mulheres e tendo em causa o factor guerra, a maioria dos lares são chefiados apenas pela mãe. Por isso essa noção de igualdade ainda não faz sentido entre a maioria da população tendo em conta a equivalência dos problemas.
3. Quais são os avanços alcançados e quais são os problemas ainda a enfrentar em questões de liberdades, garantias e direitos ?
R. Relativamente a este assunto importa referir que formalmente Angola tem na sua Constituição plasmados todos os direitos, liberdades e garantias de qualquer constituição que se queira democrática. O problema surge ao nível da aplicação destes mesmos direitos, liberdades e garantias. Por exemplo o ensino primário é obrigatório, no entanto ainda existem milhares de crianças fora do sistema de ensino. O acesso á saúde é um direito constitucional, no entanto os cidadãos são obrigados a pagar um serviço que o Estado diz ser gratuito. O acesso à habitação condigna é um direito, no entanto a maioria da população vive em bairros sem quaisquer condições de habitabilidade e de salubridade, o que tem promovido a taxa de mortalidade infantil, que é a mais alta do mundo. Isto apenas exemplificando alguns direitos básicos. Podíamos também falar do acesso à justiça, por exemplo.
No que às liberdades digam respeito, em minha opinião a violação mais flagrante tem a ver com a revisão constitucional que alterou o modelo de eleição do Presidente da República. No âmbito desta alteração, deixou de haver eleições presidenciais e apenas existem, desde 2012, eleições gerais. Neste formato, que elege Deputados e Presidente, é Presidente da República o cabeça de lista do partido mais votado. Esta é uma flagrante violação ao meu direito de escolha. Eu posso querer votar no partido A para o Legislativo e governo e no candidato do partido B para Presidente da República e com base neste modelo estou impedida constitucionalmente. Outra questão relativamente às garantias tem a ver com a capacidade de quem de direito protege os cidadãos quando são violados os seus direitos por parte do Estado. Devo reconhecer que do ponto de vista formal os progressos foram grandes, mas a realidade mostra que ainda há um grande caminho a percorrer para que a aplicação dos mecanismos se efectue sem que o cidadão tenha que exigir, que os seus direitos lhe sejam atribuídos apenas decorrente do primado da LEI.
4. Vice-ministra da Educação durante muitos anos, como explica a discrepância educacional entre as mulheres e os homens em Angola ? Por exemplo, a maioria dos bolseiros angolanos são rapazes…
R. Objectivamente falando e aqui em Angola eu considero que tem havido progresso neste sentido. A taxa de escolarização de rapazes e meninas tem vindo a aproximar-se. Mas tudo isto é muito influenciado por factores externos que dificultam um progresso sustentável. Sobretudo por causa do factor pobreza. O trabalho infantil, a distância escola casa, a gravidez precoce, a falta de rendimento na província, provocam abandono escolar e têm sido factores de inibição de um maior progresso ao nível da integração escolar.
Quanto ao acesso às bolsas para o exterior, não tenho dados estatísticos que demonstrem qual o número por género que tem saído de Angola. Mas fruto das inibições que coloquei sobre os factores de constrangimento das jovens adolescentes, sobretudo no que diz respeito às gravidezes precoces pode ser uma das razões.
R. Todos estes fenómenos são decorrentes e intensificados pela elevada taxa de pobreza. Isto não significa que muitos destes fenómenos não ocorram entre cidadãos de média ou alta renda, sobretudo no que diz respeito à violência doméstica. O desemprego decorre do analfabetismo. O analfabetismo decorre da fraca atribuição orçamental ao sector da educação, cerca de 6,70% do Orçamento Geral do Estado (OGE). A prostituição vem da desestruturação das famílias, do abandono precoce da escola e da falta de primeiro emprego e de cursos profissionalizantes. Quanto à mutilação genital feminina, não é uma prática em Angola, pelo menos não entre os angolanos. Pode ser que seja visível entre outras culturas que vivam em Angola.
6. E sobre a necessidade de uma maior participação das mulheres na vida pública ?
R. Eu acho que este é um falso problema no século XXI. Infelizmente em todo o mundo temos casos de mulheres na presidência, em lugares chave da vida de muitas nações e não resultaram numa mais valia. Hoje temos em Angola um sistema de quotas para as mulheres. À semelhança de outros países da SADC, acho que são 35% dos lugares que devem ser ocupados por senhoras. Mas o que aqui importa salientar é que não é o género por si só que define competência e entrega. É preciso, sejam homens ou mulheres, que sintam o serviço público na sua verdadeira acepção que tem que servir o povo e não servir para que cada um se sirva. Os exemplos em todo o mundo não provaram que a diferença esteja no género, mas sim no carácter das pessoas, na forma como lidam com o poder, no total respeito pela Lei e sobretudo pela genuína dose de patriotismo. E se as pessoas que ocupam lugares públicos estiverem munidas destes instrumentos morais, tanto podem ser homens como mulheres que irão trazer abundância em todos os sentidos.
7. O sistema de parentesco matrilinear que prevaleceu até mesmo durante o período colonial, no qual a maioria dos grupos étnico linguísticos em Angola transmitiam a descendência por via materna, a posição da mulher era tradicional, espiritual e socialmente mais forte. Não acha que a política de assimilação imposta pelo colonialismo contribuiu a reduzir o lugar da mulher na nossa sociedade abolindo os valorores tradicionais não cristãos ?
R. Olhe, o tempo colonial teve o seu período com aspectos negativos e alguns aspectos positivos. Mas eu deixo essa resposta para a análise histórica. O que importa à minha geração, mas sobretudo à geração da Angola Independente é o que se está a fazer hoje para a salvaguarda do nosso património cultural.
Hoje também temos uma política de assimilação que nem sequer é discreta.Falo do facto de que se algum jovem homem ou mulher pretender um emprego em muitas instituições públicas tem que ser do partido maioritário senão não entra. Falo do acesso ao crédito para os mais pobres que coloca de forma velada a condição partidária como uma mais valia para a apreciação do mesmo. Falo de uma classe média que hoje vive dependente dos humores do partido maioritário porque basta que exerça uma opinião diferente dentro de uma instituição publica e é logo demitido ou colocado numa prateleira. Por isso a nossa opinião pública é tão precária e inofensiva. Não serão estas também uma imposição e uma forma de assimilação?
8. O que nos pode dizer sobre a sua acção humanitária?
R. Na verdade é mais um estado de cidadania empenhada. Não importa apenas lamentar. É preciso arregaçar as mangas e ajudar a empurrar as carroças que não andam. Algumas das minhas acções são pontuais, são apenas de alívio a uma situação de extrema dor que se apresenta e um simples gesto pode multiplicar sorrisos e semear esperança. Eu apenas acredito na solidariedade em que somos participantes não apenas no apelo à boa vontade dos outros, mas quando empenhamos o nosso tempo e o nosso dinheiro, por mais pequena que seja a quantia.
Neste momento a minha grande acção é a CAMPANHA DE SENSIBILIZAÇÃO SOBRE A ANEMIA FALCIFORME que tem como objectivo levar o máximo de informação aos jovens que ainda não sabem se são ou não portadores desta doença silenciosa que afecta cerca de 3 milhões de cidadãos entre portadores e doentes. Fazer palestras, conferências junto de escolas secundárias e universidades, igrejas e informar sobre o que é esta doença, quais os riscos que os portadores de Anemia falciforme correm na transmissão para os seus filhos, sintomas e conselhos práticos e chamar à atenção sobre a necessidade de termos um acesso universal ao teste do pezinho e que as consultas de dia se materializem em todo o país. No fundo é campanha de informação que pode ajudar diminuir os novos casos, a dar uma melhor atenção aos casos já existentes. Também queremos fazer estas palestras junto de empresas porque é uma forma fácil de chegar às famílias.
9. Qual a figura feminina que mais admira e que mais a inspira?
R. Na defesa pelos Direitos Civis, ROSA PARKS – Na Literatura, SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
10. O seu grande desejo para a mulher angolana e para a mulher em geral?
R. Que nunca deixem que ninguém vos humilhe.
in http://www.angolahorizonte10anos.com/#!entrevista-dra-alexandra-simeao/c1j0o 24 Outubro 2014