blog2



KALAF - “O angolano que comprou Lisboa (por metade do preço)”

Mais poeta do que cantor, como ele se sente, rapidamente desistiu de estudar números e decidiu reflectir sobre o presente.Kalaf funda os Buraka Som Sistema e foi a partir daqui que passou a ver Lisboa de uma outra forma. Kalaf Epalanga, nascido em Benguela, para onde regressa a cada domingo pela mão de um Calulu, vive em Lisboa há 20 anos. Na bagagem levou, apenas, 17 anos e a preocupação dos pais pela busca de um futuro com melhores perspectivas, fora de um tempo castrado pela guerra.

Mais poeta do que cantor, como ele se sente, rapidamente desistiu de estudar números e decidiu reflectir sobre o presente. Kalaf funda os Buraka Som Sistema e foi a partir daqui que passou a ver Lisboa de uma outra forma. Uma Lisboa mestiça, primeiro moura, depois africana, depois de todos os portos do mundo, que abraça a Kizomba como uma parte de si, considerando, por isso, a pertinência da criação de um Museu da Kizomba, em Lisboa, que entre outros motivos seria excelente para aligeirar as tensões entre Luanda e Lisboa. O objectivo, segundo Kalaf, seria tarraxarmos os valores culturais que unem os diferentes povos da comunidade que fala, canta e sonha em português.

A Kizomba conquistou os portugueses de tal sorte que em cada esquina há uma escola. Passou a ser imperativo ter aulas, deslizar rebolando numa passada rija. Hoje os subúrbios de Lisboa têm uma agenda que já não sobrevive sem a mistura de uma loira nos braços de um jovem negro, que nas pistas ganha fama destilando charme e transformando a música num sentimento de união entre os povos, provando a verdadeira integração da geração do século XXI, que aqui está a deixar de ter cor.

Autor do livro "O Angolano que comprou Lisboa (por metade do preço)" pretendeu, aqui, compilar as suas crónicas aproveitando um título, a todos os níveis provocador, mostrando, com humor, quão importante é olhar para o outro lado desta questão. A transparência dos negócios minoritários, da credibilidade do dinheiro e da promiscuidade entre a política, os amigos e a família. E a maioria que não foi bafejada pela sorte de ter queda para os negócios internacionais, fala alto para impressionar e apanhando boleia da fama dos outros também somos potenciais compradores de quase tudo - mesmo quando comprimidos pela crise e sem capacidade para pagar, sequer, o excesso de peso no aeroporto da Portela - a Banga obriganos a perguntar quando nos tentam vender um negócio - quanto custa? Sabe quem eu sou? Eu prefiro Porsche!

O que me fez escrever sobre Kalaf, foi a Carta Branca que lhe foi dada pelo Centro Cultural de Belém, em Lisboa, num espectáculo a que tive a honra de assistir a convite do nosso grande amigo Pedro Hossi, no passado dia 29 de Maio. Agitador, poeta e músico como definiu o texto de José Eduardo Agualusa que apresenta o espectáculo, Kalaf mereceu todas as palmas que teve. Foi um evento, desde logo, cheio de bom gosto, de contrastes entre a luz e as palavras, de profissionalismo e de gente que o foi ver por ter sido conquistada pela voz de um homem que desafia todos os conceitos.

A palavra falada, profunda, que exigia que fosse o ritmo a segui-la, numa harmonia que tinha, nesta sala cheia de conforto, conseguido tocar cada um dos presentes. Eram repetidas as frases para que interiorizássemos a importância da nossa sina: Pior do que não ter dinheiro é não ter esquema para remediar a situação. E aqui apresentou-nos um dos mais importantes símbolos de igualdade da sociedade angolana: a bacia e a caneca, que existem na casa do Ministro e na casa da zungueira. No aperto da avaria da bomba que deixa de transportar água para as casas de banho forradas de mármore italiano, no caso dos mais "abastecidos", ou na insuficiência histórica da ausência do precioso líquido, como tantas vezes a nossa televisão pública faz referência, não há um só angolano, nesta vida, que ainda não tenha tomado banho de caneca. A igualdade em Angola, acontece sempre e apenas na insuficiência. E foi depois de ter saído deste espectáculo fantástico que, também, olhei para Lisboa de forma diferente.

Esta Lisboa que se tornou anfitriã da cultura angolana desalojada de ser independente na pátria e de se mostrar em sede própria por ausência de espaço. Não temos, sequer, um teatro. Não temos uma única sala de espectáculos, que tivesse conforto, acústica e a capacidade de termos cultura em casa, na nossa casa. Neste momento Lisboa vive um momento de cultura crioula sem precedentes, único na história, pela diversidade e pela grandeza dos seus autores. Anselmo Ralph, C4 Pedro, Nelson Freitas, esgotam todos os espectáculos, das salas tradicionais, como o Coliseu, aos mais arrojados espaços, como o Pavilhão Atlântico. São capas de revistas, vozes garantidas em todas as rádios, onde "cantam" todos os dias, e nos melhores programas de entretenimento das televisões portuguesas.

Artistas como Paulo Flores, que aliaram o Semba do lamento da Mana Chiquita, à nossa gastronomia (onde o Jantar é Sim) numa verdadeira oficina de sabores, poemas e sons que nos pedem para não deixarmos de acreditar, como Bonga, falam de Angola com amor, para um mundo que precisa de multiplicar e diversificar os olhares sobre a nossa terra e são benquistos em Lisboa. São amados, são valorizados por tudo quanto valem, por tudo quanto criam. Escritores como José Eduardo Agualusa, que ganham prémios pelas mãos de outras línguas, que na lusofonia são fonte de inspiração para jovens escritores, figuram em teses e ensaios escritos de forma erudita, pela forma como a cultura angolana de desenvencilhou e partiu, sozinha, à conquista do mundo, mas que dentro de portas não merece nem honras, nem aplausos do nosso amordaçado ministério. Ser angolano de cultura em Lisboa é um estatuto que, ao ser conquistado, torna-se acarinhado, promovido e rentável.

Aqui os artistas podem viver do poema. Podem ser autênticos e livres de censura. Podem ser apenas artistas sem a pressão de se transverterem em cabos eleitorais. O humor de Kalaf transporta-nos para a realidade. Para o facto de sermos uma nação com imensas necessidades, incluindo ao nível cultural. De termos um enorme potencial artístico que já não se curva perante a mão invisível de algum comité cuja especialidade seja Proibido Contrariar. A cultura é o único sítio que não aceita mordaças. Nasceu para crescer, da forma como cada um a vê, sente e lhe dá vida. É selvagem em todas as línguas, não desiste em nenhuma cultura e tem um estatuto de quase pessoa pelos direitos que lhe são conferidos pelas melhores práticas. Um mundo sem cultura, onde os artistas sejam bonecos de corda, onde os escritores sejam escorraçados pelas falsas democracias ou por qualquer tipo de fundamentalismo, onde as crianças não a amem desde o berço, é um mundo sem paz, sem conteúdo estético, sem palavras que constroem, mesmo quando discordamos. Será sempre um mundo sem memória. Angola precisa urgentemente de resgatar a nossa cultura das garras do silêncio imposto e sem rosto, mas que reflecte o medo, a insegurança de um sistema que é tão frágil que não suporta, sequer, o peso de um poema, de um livro, de uma canção.

Temos que ser capazes de exigir espaços de cultura, que também são de betão! Também dão comissões! Construam teatros, museus, bibliotecas e pavilhões onde as crianças possam fazer experiências culturais, com tinta, com voz, com palavras, com as mãos, fortalecendo a criatividade e o vínculo com as nossas raízes. E verão que estes espaços jamais ficarão às moscas, como estão centenas de apartamentos de luxo que todos os dias rasgam o asfalto, em detrimento das árvores e dos parques infantis, saindo tudo do mesmo dinheiro. Precisamos que o livro circule, que se gaste pela leitura das mãos de crianças curiosas, partilhados em todos os cantos de Angola e que as músicas que "não concordam" também toquem nos meios de comunicação estatais. É na diferença que se constrói um país. É na diversidade de opiniões que vencem as mais válidas. Afinal, somos ou não somos um país democrático? Kalaf, que gosta de complicar a vida, naquele palco misturou Cabo Verde, Portugal e Angola com a voz do fado com que Ana Moura cantou Humbi Humbi. Sara Tavares que do som do seu violão provou o sentido do intercâmbio genuíno, cantando uma música escrita por Kalaf e enviada num postal que chegou pelo correio. Os músicos Toty Sa´Med, guitarrista que veio de Angola, o baterista Ndu que vive em Cabo Verde e Demian Cabaut, contrabaixo africano lusitano, deram melodia a todas as palavras. E durante quase duas horas uma nova identidade cultural foi conquistada, na partilha, na ancestralidade das origens de cada um. Kalaf, reflectiu sobre um assunto que a todos importa. É no cruzamento de culturas que extrapolam a rua onde nascemos e o país dos nossos pais, que o tempo que deixa de ter fronteiras.

Aprendemos a reunir na bagagem a soma das nossas raízes que fazem nascer novos projectos, permitindo a construção de pontes que encurtam distâncias entre os povos de uma língua comum. Do Kuduro para o Spoken Word, Kalaf tem sido eficaz a pensar as questões da nossa identidade. Uma identidade sem a qual deixamos de ter passado, ficando, absurdamente, órfãos de um sentido que nos projecte para o presente. "Voa Humbi, Humbi", vai para além de ti. Fala de nós. Fala dessa África que sentes e sonhas, que é o Povo cheio de encanto e criatividade, não obstante as cicatrizes. 

 

in http://agora.co.ao/Agora/Artigo/58364

Marcações: povo