E depois de tantas visitas, onde está a Verdade?

Treze anos depois do estabelecimento da paz, após tantos desencontros para a construção da Nação, continuamos presos a métodos primários de criação de monstros sobre os quais se perde o controlo e que se tornam maiores que o criador, ou pelo menos maiores do que aquele que não agiu em tempo oportuno.
Fomos todos surpreendidos, no dia 16 de Abril, com a dramática notícia da morte macabra de nove membros da Polícia Nacional, em circunstâncias que muitos de nós ainda não conseguimos entender.
A notícia chegou seca, e, da forma como foi apresentada, sem pedido de licença, a maioria das pessoas indignou-se, com razão, contra uma seita, de que nunca tinham ouvido falar, mas que trouxera o 'fim do mundo' para os cidadãos que foram brutalmente assassinados e para as suas famílias.
Nos dias que se seguiram, apenas ouvimos a versão oficial dos factos por parte das autoridades angolanas, de diferentes escalões, que de imediato associaram este hediondo crime a um passado que todos queremos ver enterrado, definitivamente, fazendo referências implícitas e explícitas a mãos ocultas, à existência de propaganda política da UNITA encontrada no local e a um 'preocupante' número de armas.
As versões foram-se atropelando e, após o contra-ataque dos acusados de "serem os mentores morais", somos informados que a seita até tinha boas relações com o Governo Provincial do Huambo, de quem também terá recebido viatura ou viaturas, e fotos surgiram na internet, mostrando um presumível membro das hostes partidárias maioritárias locais, confortavelmente sentado em dia de culto.
E fomos lendo e ouvindo as notícias e vendo vídeos na internet, sem termos a certeza das reais intenções de quem afirmava factos novos todos os dias e eis que surgem números. No início, havia nove polícias assassinados.
Depois surgiram novos mortos entre os membros da seita, com a UNITA a afirmar que seriam 1.080 peregrinos que faleceram, sem que nos tenha, contudo, explicado qual foi o método encontrado para aferir estes números.
As autoridades regressaram a terreiro e informaram que, entre os fiéis, afinal se contavam 13 vítimas, número que foi, mais tarde, dilatado para uma eventualidade máxima não superior a 20.
E, durante uma semana, num sobe e desce que não sobe, devido às 'alegadas' cancelas policiais que não autorizavam que pessoas estranhas aos acontecimentos se deslocassem ao local (a exemplo das declarações da UNITA), somos bombardeados com notícias entrecortadas, de que o monte Sumi teria sido transformado numa zona militar para esconder possíveis valas comuns.
Alguns dias depois, eis que surge um terceiro elemento, a quem é dado o acesso livre ao local, que, de forma comedida, faz uma primeira avaliação e mais tarde apresenta um relatório no qual identifica o que viu.
Com os dados da CASA-CE, também sentimos o cheiro da morte, porque se fala em 'matança grave', mas eles também não sabem quantos terão morrido. Alguns relatos de presumíveis testemunhas foram circulando, não sendo matéria de prova para uma análise que todos pretendemos que seja isenta, sustentada, lógica e humana.
Crítica foi, também, a avaliação feita pelo Arcebispo do Lubango, que lamentou a 'abordagem' das autoridades angolanas no tratamento deste caso. Marchas de repúdio foram autorizadas. Peritos, com e sem mestrados, falaram nas televisões.
Muitas páginas de jornais foram impressas, entre prós e contras. A internacionalização do facto foi imediata. No fim da semana passada, um quarto elemento foi autorizado a subir o monte e a trazer mais algumas informações.
O site noticioso 'Rede Angola' fez uma reportagem que nos fotografa o sítio. Voltámos a sentir o cheiro da morte, conseguimos escutar os gritos, conseguimos até imaginar a geografia da fuga.
Sente-se, sobretudo, a ausência provocada pela destruição do local. A avaliação do 'Rede Angola' foi a mais completa e a mais imparcial. Não obstante a licença, sentimos que foi a reportagem possível, mas não encontrou evidências contundentes que trouxessem valor acrescentado que permitisse dirimir a dúvida, tendo concluído que "o que aconteceu permanece incógnito".
A questão que se coloca, depois de todas estas visitas, suposições, relatos oficiais e relatórios, com base nas avaliações oculares e avaliações acerca das avaliações feitas à distância, é que continuam a faltar ligação entre as verdades afirmadas.
Alguém tem de ser capaz de explicar, definitivamente, onde estão e quantas foram as pessoas que morreram. Onde estão os feridos? Ninguém os viu? Num combate como este, em que as autoridades afirmaram que foram horas de ataque intenso, é impossível que não tenha havido uma enorme quantidade de feridos.
Qual foi a evidência que permitiu que a UNITA chegasse a 1.080 mortos, sendo o intervalo entre este e o número apresentado pelo Governo de uma magistral diferença? Onde estão os fiéis fugidos, que são testemunhas e cujo número também não é líquido? Quantas são as pessoas cujos relatos de familiares e testemunhas dizem estarem desaparecidas até hoje?
Onde estão todas estas pessoas mortas, vivas, as crianças e os velhos que não deixaram rasto? Por que razão todas as delegações que visitaram o local são unânimes em afirmar que morreram muitos mais fiéis do que o número oficial apresentado?
Sendo estas afirmações feitas por membros de partidos políticos, com assento no Parlamento, outras feitas pelas autoridades governamentais angolanas, a par de relatos idóneos de jornalistas tarimbados, depois de tantas visitas, opiniões e investigações temos de ser capazes de conseguir criar lógica nos argumentos de uns e de outros.
A nossa história é prenhe em meias verdades. Temos traumas antigos de todos os lados de versões que nunca coincidiram. Temos batalhas que tiveram duas versões e factos históricos que ocorreram nos dias em que dava mais jeito.
Temos pessoas que foram vítimas de acontecimentos promovidos pela ausência de lucidez e que ainda hoje permanecem na dor, porque a verdade nunca foi discutida, analisada, apresentada como uma evidência, nem as certidões de óbitos foram entregues.
Treze anos depois do estabelecimento da paz, após tantos desencontros para a construção da Nação, continuamos presos a métodos primários de criação de monstros sobre os quais se perde o controlo e que se tornam maiores que o criador, ou pelo menos maiores do que aquele que não agiu em tempo oportuno.
As declarações oficiais locais e centrais minguaram. E, no entanto, a procissão ainda vai no adro. Resta-nos esperar por um julgamento que permita que os factos sejam iluminados, por mais hediondos que sejam, se tornem isentos de dúvida; porque só reconhecendo o que correu mal, só assumindo a culpa de quem for, comprovadamente, culpado, só gerindo as crises sem o resgate de fantasmas, e de forma desassombrada, deixaremos de ser reféns de 'verdades' que se afirmam incapazes de provar onde está a verdade.
in http://agora.co.ao/Agora/Artigo/57846/E_depois_de_tantas_visitas2c_onde_estc3a1_a_Verdade3f
19.05.2015
Marcações: jornal Agora,, crónica