E se o povo se candidatasse?

Foi por causa do alargamento do fosso existente entre os que mandam e os que são mandados que o povo eleitor e contribuinte se decidiu a ser, ele mesmo, 'governo' e 'deputado'. O exemplo nasceu da necessidade, convenhamos. Tornámo-nos profissionais, no bairro ou no asfalto, em matéria de gestão das nossas mais elementares necessidades e deixámos de incomodar as autoridades.
Os nossos representantes, eleitos pelo povo, que deviam tomar a iniciativa de proteger quem os elegeu, fiscalizando todas as questões que contra estes se insurjam, bem como, em seu nome, garantir as melhores opções de gestão estratégica, estão ausentes, longe do dia-a-dia dos mais desafortunados e na maior parte das vezes tardam em sair do conforto do gabinete e sobre esta matéria não é preciso encomendar um relatório de avaliação de eficácia.
Dos desalojamentos forçados, à estadia fora de prazo dos visados, em zonas muito piores das que estavam inicialmente, às promessas que se tardam em cumprir, passando pela injusta distribuição do rendimento a todos os níveis, acumulando com a ausência de progresso social, exaustivos seriam os factores negativos para continuar a apontar. Foi por causa do alargamento do fosso que existe entre os que mandam e os que são mandados que o povo eleitor e contribuinte se decidiu a ser, ele mesmo, 'governo' e 'deputado'.
O exemplo nasceu da necessidade, convenhamos. Tornámo- nos profissionais, no bairro ou no asfalto, em matéria de gestão das nossas mais elementares necessidades e deixámos de incomodar as autoridades. Gerimos a nossa água, cartando ou comprando, para que seja constante e com lixívia no balde, bidão ou tanque tornamo-la potável.
A luz, com vela, gerador, garrafa de trapo ou com o famoso 'gato' passou a estar garantida. Gerimos os parcos recursos face a uma alimentação cada dia mais incomportável e importada, porque as opções foram erradas durante anos e persistem ainda hoje, com um OGE que traiu a agricultura e, por isso, a maioria da fuba que, com orgulho nacional comemos, vem do Brasil e da Argentina, tal como o sal vem da Namíbia e de Portugal.
Esta gestão não reconhece, é certo, as exigências da OMS no que ao consumo das 2.100 kcal diz respeito por pessoa e por dia, mas é posta em cima da mesa por via dos milhões de empregos informais que foram criados e que se mostraram muito mais eficazes no combate à fome e à pobreza do que todos os programas institucionais existentes.
Gerimos a frágil saúde com recurso às ervas e, às rezas, porque nem sempre temos dinheiro para comprar vida com medicamentos. Garantimos a educação, pelos bairros em quintais cheios de crianças que não têm registo e encontram nas 'explicações' e em escolas comparticipadas um mecanismo eficaz para combater o analfabetismo, almejando, desta forma, cortar os laços genéticos com a pobreza extrema que se abate sobre as famílias a, pelo menos, três gerações, financiando, ao mesmo tempo, a manutenção das escolas primárias públicas, porque não são unidades orçamentadas com rigor. Somos, quotidianamente, topógrafos ajuramentados, obrigados a fazer o levantamento dos novos buracos, que, a todo o tempo, surgem na via, à frente da nossa porta, seja no Alvalade ou no Zangado, para não sermos engolidos por cratera desautorizada.
Estamos a resolver os nossos conflitos pela via pacífica, com reuniões familiares, ou no limite adoptamos a solução "que se lixe", porque ou morremos antes do tribunal dar a sua sentença (aqueles que conseguem chegar ao tribunal), ou somos traídos pela incapacidade de pagar o valioso trabalho dos nossos advogados, a maioria com honorários que fogem a todas as perspectivas dos nossos anorécticos bolsos.
Temos de decidir todos os dias se compramos velas ou gasóleo ou a comida dos filhos e optamos pela comida. Temos de ser capazes de suportar a dor do dia seguinte da morte do nosso filho, vítima de negligência institucional que, desafortunadamente, morreu antes dos cinco anos. Fazemos mais filhos para suportar a saudade e ajudamos assim a promover o crescimento da taxa de natalidade que se regista crescente a cada ano, não permitindo que o país envelheça, como está envelhecida a Europa que luta contra os efeitos da sua pirâmide invertida.
Transportamo-nos em táxis 'acaba di mi matar', desprovidos de ar condicionado, para garantirmos um emagrecimento forçado sem recurso ao ginásio, com motoristas desencartados pela avença garantida a um polícia ressacado. Driblamos a malária com fumos caseiros e redes de fardo nas janelas, uma vez que não podemos viver encafuados no mosquiteiro o dia todo, fugindo do mosquito que nasce nas lagoas putrefactas invisíveis a todas as administrações.
Tornámo-nos parceiros eficientes da ELISAL e, a custo zero, ateámos fogo ao lixo amontoado, por ausência de recolha e insuficiência de contentores, para matar de véspera as cóleras e as diarreicas agudas, antes que elas nos matem.
O salário mínimo nunca foi importante, já que a tese do 'cabritismo' ganhou raízes profundas e, no desenrasca, muitos se safaram sem onerar o erário. Contribuímos para o enriquecimento do dicionário das profissões com a invenção de novos profissionais, a exemplo dos Roboteiros, Bagageiros, Kinguilas, Micheiros, Atravessadores de Peões, Instaladores de 'gatos', Marinheiros- Candongueiros, Lotadores, Balatadores, Garimpeiros, Muambeiras, entre outros, o que prova o espírito empreendedor da maioria da população.
O povo tem agora novos desafios. Um Kwanza que se tinha internacionalizado e a quem foi confiscada a internacionalização, voltando nos dias que correm a ser uma moeda local, com a sua consequente e acelerada desvalorização face ao dólar. Por causa de um desenvolvimento económico que nunca foi acompanhado de desenvolvimento social e que o povo, na sua modesta compreensão, foi testemunha desta certeza, estando sempre presente, como estatística, na periferia do índice de desenvolvimento humano, levantou-se e criou um sistema paralelo de urbanismo cumprindo, desta forma, os planos traçados pelo Governo de construção de um milhão de casas.
Criou um sistema de crédito popular, Kixikila, entre família, amigos ou colegas de trabalho, que não tem 'mal parados' e beneficia todos os intervenientes numa poupança assegurada e sem esquemas que se tem mostrado muito mais eficaz que o BUE, não exigindo para o efeito filiação partidária aos pretensos beneficiários.
Conseguiu estar sempre à frente das medidas administrativas que são criadas para disciplinar, mas que, no fim, apenas encorajam a corrupção, tais como a venda de terrenos e passou a negociar com base numa nova tabela de emolumentos, criada pela própria fiscalização. Entrou no negócio da fé não legalizada, que vende a esperança, a cura e a harmonia familiar e são já 1200 templos, parceiros no aconselhamento ideológico, operacionais em tempo de eleições.
A população mais jovem deixa todos os dias as suas zonas de origem e vem para a cidade grande, no outro tempo por causa da guerra, hoje por causa da fome, e pelas ruas estabelece mercados, e desenvolve micronegócios de utilidade pública, desde o arranjo dos telemóveis, à costura de vão de escada, do 'fumado dos vidros', à preparação de 'Xandulas' e 'Motorolas', passando pela venda de tudo o que puder ser comercializado, apenas com recurso ao espaço das suas duas mãos.
O povo tem aguentado todas estas pressões e tem sabido encontrar solução. Tem sido, inclusive, o garante da estabilidade social e da PAZ, pela sua atitude pacífica, pela sua capacidade de se regenerar a cada dia e pela sua bondade.
O povo tem sido capaz de perdoar a ausência de uma melhor distribuição da riqueza, cada programa que termina a meio, cada plano de desenvolvimento social que não o inclui. A sua única prioridade tem sido resolver os seus problemas como pode, sem reclamar nem exigir aquilo que foi uma promessa histórica, em que o mais importante era "resolver os problemas do povo". Antes pelo contrário, é agradecido pelas mais pequeninas dádivas, como é o caso de, no século XXI, ainda estarmos a construir chafarizes.
Ganhou competências fiscalizadoras, das redes sociais, à folha A4 colocada nos muros dos bairros, passando pela grafite, o Rap, o teatro, os programas humorísticos e a poesia, faz reclamações pertinentes no que à legalidade e infracções diz respeito. Tem sido sempre consequente, persistente e graças a esta postura tem conseguido tomar conta da sua família. Deixou de acreditar em política. Deixou de esperar pelos milagres institucionais que se acumulam a cada cinco anos, de acordo com a agenda eleitoral, que, cumprida a missão, volta a ser o intervalo do voto.
Deixou de sonhar com mais do que aquilo que são as suas reais possibilidades. Estamos órfãos de causas. Por isso, não duvido de que, se os representantes do povo, do segundo maior produtor de petróleo de África, se ausentassem por tempo indeterminado, o povo não iria sentir, porque já conseguiu garantir os mínimos olímpicos de sobrevivência básica.
in http://agora.co.ao/Agora/Artigo/57980/E_se_o_povo_se_candidatasse3f
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