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As vítimas também são nossos filhos!

Todos os dias os órgãos de comunicação social desmontam mais um drama, de assédio sexual numa escola, de um motorista de colégio que viola uma aluna, de um padrasto que seguiu a crença e as promessas de cura de um feiticeiro e violou, durante meses, o seu enteado de seis anos, dos dois irmãos que com um amigo violam a sua irmã, bebé de três anos, que acabou por morrer. São deprimentes os relatos que ouvimos todos os dias acerca de assédio e abusos sexuais contra crianças.

Do alto na nossa indiferença colectiva, lamentamos à distância, na certeza de que este tipo de situações apenas acontece aos filhos dos outros, mas a cada dia a distância encurta e de repente já é a filha de uma amiga, o sobrinho de um funcionário, a nossa afilhada, mas, no interior dos nossos corações, temos a certeza de que os nossos filhos estão salvos. Será que os filhos das constantes violações não são nossos filhos também?

A que distância estamos a deixar a nossa responsabilidade colectiva e o nosso coração? A dor de qualquer criança angolana tem de ser uma dor colectiva. Tem de nos obrigar a denunciar a cada vez que vemos, ouvimos ou desconfiamos que uma criança chora pela violação que sofre em silêncio e sem ninguém que lhe valha. Não podemos desviar o olhar, fingir que não vemos não é solução, é que depois do copo partido não há volta a dar e a cola neste caso não serve para consertar almas destroçadas, infâncias e inocências perdidas e corpos profanados. Temos de mudar a nossa mentalidade e a nossa postura perante este tipo de injustiça, sobretudo ficarmos proibidos de sermos coniventes por omissão, porque estamos demasiado ocupados a viver a nossa vida.

A violência do dia-a-dia das nossas crianças está a transformar o abuso sexual, a feitiçaria e o trabalho infantil num registo de aceitação colectiva, principalmente quando não há denúncias e o caso fica enclausurado no seio das famílias. Não podemos continuar a aceitar como normal que todos os dias dezenas de crianças sejam assediadas e violentadas, muitas delas acabando por morrer na cama de um hospital. O abuso sexual é uma prática cruel e criminosa, capaz de deixar marcas profundas no corpo e na alma das vítimas, afectando, particularmente, todo o universo de estabilidade emocional de uma criança. Por serem clandestinas, a maioria das acções de abuso sexual infantil em Angola, bem como a exploração sexual de adolescentes, mormente daqueles que não têm família e estão na rua ou que vivem em instituições de acolhimento ainda têm pouca visibilidade, tal como se colocam dificuldades para aferir aos números reais de vítimas. São escassas as informações, os depoimentos de testemunhas e de vítimas, as denúncias, pesquisas e estudos inexistentes ou desactualizados, que permitam uma avaliação qualitativa e quantitativa da confrangedora dimensão deste problema.

Todos os dias os órgãos de comunicação social desmontam mais um drama, de assédio sexual numa escola, de um motorista de colégio que viola uma aluna, de um padrasto que seguiu a crença e as promessas de cura de um feiticeiro e violou durante meses o seu enteado de seis anos, dos dois irmãos que com um amigo violam a sua irmã, bebé de três anos, que acabou por morrer. Na cidade, no bairro, na zona rural ou nos condomínios de luxo, o perigo está à espreita, a maioria das vezes dentro de portas, esconde-se na simpatia do vizinho, do conhecido do amigo, do parente próximo e os bastidores onde ocorrem estas acções muitas vezes coincidem com a conivência inconsciente da restante família. Pais que violam e engravidam filhas, filhas que se tornam mães e irmãs do seu próprio filho.

O drama cresce todos os dias, multiplica-se a cada esquina e a mesma sociedade que assiste escandalizada a um beijo entre adultos numa cena de novela e se levanta indignada, não se une numa marcha pública para salvar os nossos filhos num grito de repúdio colectivo, num abraço apertado que pudesse juntar todos os pedacinhos partidos no interior daquele filho que ainda nem sabe o que lhe aconteceu. Por serem clandestinas, a maioria das acções de abuso e assédio sexual ainda têm pouca visibilidade. Estes filhos que vão carregar este fardo pelo resto das suas vidas, não estarão em condições de perdoar. Sobretudo porque depois nem são, sequer, tratados como vítimas, não usufruem de nenhum tipo de atendimento psicológico que lhes permita diluir a dor.

A promessa PRIMEIRO AS CRIANÇAS tem que ser cumprida. Sem crianças saudáveis o futuro de qualquer país estará doente e por isso ameaçado. Aliás, duvido que estejamos em condições de falar, sequer, de futuro em sentido positivo. A maioria das crianças angolanas é órfã do presente e por isso o seu destino amanhã é uma incógnita. Nascem em desigualdade de oportunidades à mais de 500 anos. Não são atingidas pelas recomendações e leis criadas para as protegerem. O âmbito dos tratados internacionais que assinamos com pompa e circunstância param à porta das suas miseráveis e desprotegidas vidas e não as incluem. As nossas instituições de apoio e atendimento à criança estão fora de prazo, num modelo caritativo que se esgotou com o fim da guerra.

Temos que repensar o INAC e o MINARS, que não conseguem estar à altura de um tempo que deve exigir desenvolvimento. Está esgotado o actual modelo de atendimento à infância. A vida de um país depende da qualidade de vida das suas crianças. Do rigor com que são tratadas, da protecção da sua integridade física e psicológica. Esta bandeira não pode ser empunhada apenas no Dia da Criança, na doce ilusão de um dever cumprido.

Temos que ser capazes de ir mais longe. Temos que inibir o índice preocupante de casos de abuso sexual contra as crianças num modelo que envolva repensar a moldura penal e a assistência social local no domínio da monitoria e do atendimento personalizado de acções concretas. Angola ratificou os 11 Compromissos e comprometeu-se a adoptar medidas pertinentes de carácter político e legislativo, através do estabelecimento de mecanismos de coordenação multissectorial eficazes para prevenir e combater todo o tipo de violência contra as crianças. Não obstante, os números e as evidências traem todas as prévias intenções. Os programas em Angola não são avaliados, sobrevivem fora do tempo, caducam em funcionamento, sem que ninguém se importe.

Como queremos reduzir os números da mortalidade infantil se a cada dia novas formas de violência de agudizam. Quantas crianças menores de 5 anos morreram em 2014 vítimas de violação sexual, maus tratos, negligência ou sob a acusação de práticas de feitiçaria? É necessário reduzir as assimetrias, há demasiadas fraquezas sociais que inibem que o crescimento económico se transforme em desenvolvimento e progresso social. O OGE de atendimento à infância tem vindo a diminuir a cada ano, não obstante os indicadores de crescimento económico terem sido favoráveis até ao ano passado. Não são de natureza económica as mais flagrantes distorções sociais? Não são de natureza económica os mecanismos que promovem ou que inibem o Índice de Desenvolvimento Humano e de Progresso Social? A equidade não tem tido nenhuma prioridade.

É necessário conseguir retirar da governação os nefastos mecanismos que se intrometem entre a salvaguarda dos interesses de todas as crianças e as promessas feitas que não se concretizam, não obstante haja quem afirme que as crianças angolanas têm vindo a conquistar um lugar de conforto, mesmo quando todos os indicadores dizerem o contrário.

 

in http://agora.co.ao/Agora/Artigo/58174

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