
kalucinga
Kalucinga ou o free-style na literatura angolana por REGINALDO SILVA
Para um preguiçoso com e sem aspas, cada vez mais assumido e militante como eu me declaro para evitar certas dívidas e outras tantas cobranças, aceitar um convite para apresentar um livro é sempre um desafio hercúleo que ultrapassa as minhas reduzidas forças iniciais. Antes mesmo e de tudo o mais, tendo como referência inspiradora o viciante, alucinante e compacto facebook, começo logo a pensar no número de páginas que a obra tem e nas inúmeras dificuldades que vou ter para vencer a distância que me separa da primeira à ultima, sem contar com capa, a contracapa e as orelhas, os prefácios e os posfácios.
Desde logo a impressão que tive do livro da Alexandra resultante do primeiro contacto visual com o mesmo, que é fundamental para a minha decisão de aceitar ou não este tipo de convite, que felizmente têm sido muito poucos, foi a melhor possível, tendo certamente como referência o seu volume, mas também o nome que ela deu a este seu primeiro abraço com as letras, tornado público. Foi de facto uma boa impressão, mesmo sabendo que é a sua estreia, com todos os riscos que este passo significa para a reputação de quem se inicia neste mundo da escrita e dos escribas. É diante de algum melindre deste desafio inicial, permitam-me esta chaveta, que hoje percebo melhor a ideia e a bondade dos pseudónimos literários, o que não tem nada a ver com os seus concorrentes mais directos que hoje pululam por aí nas colunas da imprensa e nas redes sociais em intervenções pontuais por vezes muito pouco higiénicas para os meus gostos.
Falo desta intervenção, com a utilização do pseudónimo, sobretudo em países onde a crítica literária é profissional, funciona a sério e normalmente costuma ser implacável com os debutantes. Feliz ou infelizmente este ainda não é este o nosso caso, a explicar possivelmente outras situações mais complicadas relacionadas com a qualidade do nosso produto literário, com os olhos postos nos autores mais jovens. Também não é o caso da autora que decidiu enfrentar a crítica de cara aberta. Completamente às escuras sem saber minimamente do que se tratava, aceitei desde logo o convite para fazer esta primeira leitura do seu projecto, pois também já não era possível dar uma tampa a Alexandra, com o risco de passar o resto da minha vida a curtir em capítulos diários um daqueles remorsos monumentais que nunca mais acaba mesmo com todas as desculpas possíveis e imaginárias que nos possam ocorrer para justificar a nega.
Pensei para mim, este livro não deverá ter mais de 200 páginas o que parece estar dentro das minhas capacidades iniciais, sem necessidade de fazer algum sobre esforço que me poderia ser fatal, impedindo-me hoje de estar aqui a partilhar com todos os presentes as minhas impressões sobre o seu Kalucinga, título que por si só, pela sua beleza sonora chama a atenção até dos mais distraídos. A minha pelo menos chamou, já que sou facilmente atraído por nomes que me fazem lembrar mulheres bonitas. Kalucinga fez-me lembrar o da minha mãe já falecida mãe, que por aqui andou mais de 70 anos com o nome de Angelina. Descobri depois que a palavra Kalucinga para além de ser o nome de uma povoação localizada no município do Andulo/Bié e de um rio homónimo, tem origem no vocábulo da língua umbundo Olussinga que significa teimosia ou nervos e conta a história da formação desse rio.
Uma história de facto de teimosia da própria natureza, pois de acordo com as minhas fontes orais, havia na região apenas uma vala pequena que se viria a transformar em rio com o concurso da chuvas. Se tivesse que traduzir Kalucinga para português, por minha conta e risco falaria de uma teimosinha ou de uma pequena teimosia em querer ser qualquer coisa de útil. Desde logo própria génese deste livro contado pela sua autora fala exactamente de uma teimosia que ela chama de atrevimento e que durou 15 anos a ir parar ao prelo e estar hoje aqui traduzida em mais uma aposta editorial da Chá de Caxinde, que tem sabido abrir as suas portas aos mais jovens, tendo apenas como critério o próprio valor intrínseco da obra, sem olhar as outras cores mais cinzentas que integram o nosso arco-íris e que por vezes ainda querem subordinar a liberdade de criação a outras dinâmicas estranhas ao processo criativo.
Espero, como é evidente, que desta relação da Alexandra com as edições Chá de Caxinde nasçam mais Kaluncigas. Tendo em conta o conteúdo da primeira, já deu para ver, que há na sua quitanda potencial para muitas mais que agora já não precisam de ficar adormecidas 15 anos. O primeiro desafio que é sempre o mais difícil está vencido com este parto natural. Segue-se o teste do público e da crítica, que, como já vimos atrás, ainda não é bem o forte do nosso panorama literário. Depois de olhar para o livro da Alexandra e reparar que eram só 179 páginas divididas em capítulos bem curtinhos, tirando o primeiro que é o maior de todos com 11 longas e intermináveis páginas, respirei de alívio.
Por favor, caso venham a manifestar futuramente algum interesse pelos meus serviços, não me convidem para apresentar livros com mais de 200 páginas. É o meu limite! E agora passa a ser também o meu modelo de produção literária. Sobrevivi e aqui estou para vos dizer sem mais rodeios, pois normalmente digo logo o que penso para não me esquecer no dia seguinte, que gostei muito do livro, por várias razões, desde as mais sócio-políticas até às mais estéticas, a traduzir de algum modo uma relação de causa/efeito que tenho com a sua autora. A Alexandra entrou sem esforço nenhum para a galeria das minhas recentes amizades, num contexto onde as indefinições se avolumam e as dúvidas se multiplicam engolindo-nos certezas fundamentais de ontem que pensávamos serem à prova de bala e estarem protegidas contra todos os riscos.
Dizem-nos, mas nós não queremos acreditar, que isto já é a Nova Angola. É Angola certamente, mas se já não é a velha também ainda não é a Nova, pelo menos naquele sentido que a política confere a este termo por contraposição a palavra Velha, entendida esta última não como a mais idosa, mas apenas como aquela que é para esquecer devido às más e remotas recordações que possuímos dela. Talvez seja uma outra Angola que, por sinal, encontramos dolorosamente bem retratada em vários momentos da escrita contagiante com que a Alexandra preenche este livro, desdobrando-se entre a prosa pura e dura e a poesia mais terna.
Em Kalucinga também encontramos a Nova Angola, ou pelo menos o sonho do que será este país diferente, que está para chegar, na sequência de um processo eleitoral que há-de acontecer um dia destes. Como devem imaginar, nos últimos tempos não tem sido fácil coleccionar amizades, resultando esta empatia com a Alexandra antes de mais da sua postura como cidadã e da maneira de ser e de assumir como mulher a sua angolanidade, que eu tenho de valorizar pela positiva passe a redundância e que acaba por ensopar este Kalucinga do primeiro ao último dos seus capítulos, tendo como epílogo a frase estampada de Gabriel Garcia Marques que nos diz, passo a citar: “Aprendi que um homem só tem direito de olhar um outro de cima para baixo, para ajudá-lo a levantar-se”. Tenho vindo a acompanhar o percurso da Alexandra mais de perto sobretudo desde que ela há mais de um ano recomeçou a dar-nos notícias frescas ao juntar-se ao programa “Elas e o Mundo” que a LAC transmite todas as quartas-feiras, como um espaço plural de opinião e algum debate contraditório, que por sinal tem nela a sua principal animadora, sem qualquer desprimor para a intervenção das restantes colegas do painel.
Notícias frescas, porque hoje já ficamos muito melhor informados sobre o país real que temos, ao acompanharmos na média os espaços de opinião e debate, quando eles são feitos sem papas na língua, do que os noticiários propriamente ditos. Cento e setenta e nove páginas depois, percorridas velozmente por entre 32 capítulos e várias horas que não cronometrei, tendo o sprint final acontecido no último domingo em contrarrelógio, cheguei ao fim de Kalucinga com a sensação estranha mas muito agradável de não saber muito bem o que tinha acabado de ler, se quisesse acantonar o livro da Alexandra na prateleira dos géneros clássicos da literatura entre o épico, o lírico e o dramático. No âmbito da teoria, o épico viria posteriormente a ter na narrativa uma variante fundamental onde foram encaixados o romance, a novela, o conto, a crónica e a fábula.
Como narrativa que é, o Kalucinga acaba por ser uma mistura nervosa de tudo e mais algumas, uma colagem ou, melhor, uma perfeita osmose, entre a ficção, a realidade autobiográfica e a utopia da autora, que sem pertencer à famosa geração do mesmo nome, continua a sonhar com uma terra de justiça e fartura para todos num contexto histórico completamente diferente, onde em principio o sonho da primeira geração já devia estar realizado mas não está, porque virou miragem. Num esforço para tentar catalogar esta mistura cheguei a conclusão, fazendo uma analogia com a música dos nossos jovens barulhentos, que estava diante de um verdadeiro free-style na literatura. Kalucinga, se me permitirem este atrevimento, enquanto eterno candidato nas horas vagas a crítico literário não autorizado, pode ser percursor de um novo género literário angolano, à semelhança do que aconteceu com o “Novo Jornalismo” nos anos 60 nos Estados Unidos popularizado pela revista The New Yorquer. O novo jornalismo deu-nos o romance não ficcionado.
Para não ter que classificar Kalucinga como sendo o ressuscitar, pela pena electrizante e devastadora da Alexandra, onde os recados e as alfinetadas são recorrentes e estruturantes num texto politicamente comprometido e desafiador, dizia, para não ter de ressuscitar o “Novo Jornalismo” em Angola, mais de cinquenta anos depois da sua invenção/criação por Truman Capote com a publicação do seu perfil sobre Marlon Brando, “O Duque nos seus domínios”, prefiro hoje falar da introdução do género free-style na nossa literatura. Neste género tudo pode acontecer e é permitido em matéria de misturas e cruzamentos desde que seja bem escrito, com imaginação e elegância, mas sem facilidades nem concessões e as pessoas entendam facilmente a mensagem sem precisar de descodificadores caros, nem de lições académicas sobre o ecletismo no século XXI.
É o que a Alexandra consegue e bem nesta sua estreia com Kalucinga fazendo-nos viajar pela vida do Azarado um menino proveniente do planalto central, que de repetente ficou sem rua em Luanda, forçado a sair da sua Kalucinga natal a toque de caixa pelo ribombar dos ventos fratricidas do conflito pós-eleitoral. Ao mesmo tempo que vamos acompanhado as peripécias e as reflexões do Azarado no seu comovente confronto com a solidão total, a miséria e a fome, a violência urbana e a indiferença social misturada com a agressividade dos que passam e que cá vivem, vamos sabendo da vida verdadeira da autora em permanentes flash-backs sobre o seu passado e a sua família do lado paterno e materno, onde se juntam humores diferentes provenientes de duas origens bem distintas na geografia de Angola mas não só, cuja síntese parece estar bem reflectida no que é hoje a personalidade da autora se ela me permitir esta tímida aproximação ao seu carácter.
Em paralelo, estas duas narrativas vão fazendo o seu percurso ao longo do livro com cruzamentos aqui e ali provocados intencionalmente pela autora que também é amiga e protectora do próprio Azarado, num clima por vezes algo surreal quanto ao cruzamento dos factos narrados, mas sempre fácil de entender quanto aos seus propósitos no âmbito da estratégia traçada. É o caso da fotografia do já falecido pai da Alexandra que ela encontrou em posse do Azarado, com uma dedicatória escrita pelo próprio onde se fala da famosa confusão entre o focinho de um porco e uma tomada de electricidade.
Em resumo a história do Azarado que depois de ter saído de Kalucinga, viveu como menino sem rua na cidade grande, foi adoptado por uma família generosa graças a qual estudou e se formou, foi um destacado activista cívico na defesa e promoção dos direitos humanos, termina com a constituição do seu partido partido e com a sua eleição para Presidente de Angola, onde se destacou como um dos melhores estadistas do mundo pela sua subordinação total ao interesse público e capacidade de governar pensando apenas na resolução dos problemas do povo. Kalucinga é assim a história do país real onde vivemos, é a história da autora, mas é também o forte desejo manifestado por ela de termos uma Angola bem diferente daquela que hoje nos é oferecida, numa crítica frontal aos desvios, as injustiças, as ganâncias e às indiferenças.
Como sonhar nunca foi proibido por não ser possível a ninguém interferir com esta nossa capacidade, Alexandra sonha com a possibilidade de um menino que nem endereço tinha, vir a transformar-se no melhor Presidente da história de Angola.
No livro o sonho é plenamente realizado, mas na realidade as nossas esquinas continuam cheias de azarados, onze anos depois da guerra que trouxe o Azarado de Kalucinga até Luanda, ter terminado.
Diria a concluir esta apresentação, que é muito azar junto! Parabéns Alexandra por este Kalucinga!